A BICICLETA DOS SENTIDOS
Louis Aragon, poeta e escritor francês cuja memória bem podia ser resgatada, escreveu um dia que “o espírito desprende-se um pouco da mecânica humana, e então já não sou a bicicleta dos meus sentidos, a pedra de aguçar as recordações e os encontros”.
A primeira vez que li isto, sendo eu então jovem de mais, fui atraído pela beleza das sonoridades. O texto era, mais do que palavras, uma escada de palavras seguidas de palavras, ou melhor, uma sobreposição encadeada que tinha a dimensão do lugar errante, provavelmente errado, daquilo que eu perseguia, mesmo sem ter forte consciência do que fazia: a procura de um lugar onde a liberdade fizesse sentido e pudesse eu atravessar terrenos para lá da mecânica humana, com um bicicleta própria, a dos meus sentidos, sobressaltada mas firme sobre as pedras de aguçar recordações – e encontros.
Alguém me ensinou, mais tarde, que a palavra é o homem fora do homem. Nela somos mais do que o que somos e é ela que permite a forma de deixarmos de ser escravos, que todos o somos, de alguém ou de alguma coisa. Aliás, posso dizer que todo este pensamento se deve a escutar Eduardo Lourenço – e de meu tem apenas a singular forma como estremeço tudo.
É por razões assim que tanto estimo as palavras. As dos outros, sobretudo, se elas constroem o ser humano de dentro para fora, e ultrapassam a primeira etapa dos sons que transportam para serem as imagens e sobretudo as sensações que geram. Coisas. Muito para lá das recordações e dos encontros. Coisas de sentir.
Kakfa, escritor que nasceu no Império Austro-Húngaro no espaço que seria pouco tempo depois a Checoslováquia e que agora é a República Checa, coloca no sentir de um dos seus personagens – um homem que acorda transformado em inseto, metáfora provável do que somos quando acordamos e vemos como o mundo piorou à nossa volta – , o sentimento retemperador dos sons construtivos: “esta música comovia-o imenso. Tinha a impressão de que um caminho se lhe oferecia para o alimento desconhecido que ele desejava tão ardentemente.”
Estou então com a boca nas palavras como se me alimentasse.
O mundo é esse confuso ruído entre coros insuportáveis e melodias reconfortantes.
Escrevo isto enquanto Trump grita as suas soluções desesperadas, rasgando o acordo nuclear com o Irão. Escrevi há dias que há quem o empurre para o Prémio Nobel da Paz, por causa da aproximação entre Coreias, aliás só possível graças à enorme vontade política, diplomática e económica da China (e não da América Trumpeada).
Acordamos todos os dias com fome de música, pelo menos alguns de nós. Temos aqui mesmo a bicicleta dos sentidos, pronta para novas jornadas. Mas alguns entre nós são seres que acordaram transformados. Em insetos, como na metáfora. E as pernas dos insetos nem sempre chegam aos pedais.
Só as palavras, que ainda não ouvimos, podem conter a remissão, a clemência para o que simplesmente não escutamos e a que alguns de nós chamam, em sofrimento, ignorância.
Alexandre Honrado
Historiador